Carta
Nível de descrição
Documento simples
Código de referência
PT/MVNF/AMAS/ACP/14ª GERAÇÃO-A-G/001/0283/000001
Tipo de título
Atribuído
Título
Carta
Datas de produção
1910-10-16
a
1910-10-27
Dimensão e suporte
1 fól.; papel.
Âmbito e conteúdo
Carta manuscrita assinada, da Rua Cruz dos Poiais (Lisboa).Transcrição da carta:"16-10-1910Caro Vicente Desde que cheguei que todos os dias tenciono escrever-lhe; mas chega a noite, sem ter tido tempo nem cabeça para me entregar a essa agradável tarefa. Falta-me o tempo, sempre todo é pouco, para tratar da minha pobre vida, que tudo isto desorganizou e atrapalhou por completo — não tenho tido cabeça porque a cada momento o que me contam e o que vejo me perturba o espírito, ora desarrumando-me, ora enfurecendo-me e desesperando-me. Principiemos pelo princípio. Eu quero dar-lhe a minha impressão das coisas desde que cheguei a Lisboa, até o dia em que concluir esta carta, que pelo que vejo terá de ser longa e feita por etapas. A revolução foi uma farsa indigna, que V. mais ou menos conhece. Esses heroísmos de que se falava, tudo mentira... tudo. Exceptuando o Couceiro que andou bem e que tomou proporções de herói, porque tudo ao redor dele foi vil e pusilânime, porque afinal ele não fez mais do que cumprir o seu dever.O resto foi odioso, infame. Traições sobre traições, cobardia, sobre cobardia; parece que estavam todos apostados em qual se havia de mostrar mais porcamente ignóbil! Que da parte dos monárquicos o espectáculo foi degradante e abaixo de tudo o que se deve imaginar, sabe-o o Vicente, porque o sabe toda a gente, mas os outros, os vencedores, que intrujões, que farsistas! Não morreram ao todo dez! Os mais que fizeram alguma coisa foram as duas dúzias de populares que entraram a dar o sinal no quartel do 16, para resolverem os soldados a sair para a rua — o resto comédia, pura comédia.Pois se não houve a mínima resistência da parte dos monárquicos?! Se todos ou porque eram conspiradores (e esses eram a maioria) ou por cobardia não se bateram, davam ordens em contrário às que recebiam dos comandantes; ou as sustavam ou atrasavam sem as dar, ou as entregavam a torto e a direito, ou fugiam! Duas ou três vezes as tropas que guarneciam a Rotunda, por parte dos revoltosos a abandonaram quase completamente, tornando-se facilimo desbaratar os poucos soldados que lá ficaram comandados por um curioso. Pois não houve uma companhia (isso bastava) de infanteria que atacasse aquela posição!! Uma das vezes houve verdadeiro pânico: os revoltosos considerando-se perdidos, abandonaram a Rotunda (à excepção de uma dúzia), a infanteria do 16 correu em doida para o quartel — a fugir, e que hão-de fazer os poucos oficiais que lá tinham ficado por não quererem aderir à revolução? Quando os viram perto do quartel, se deviam de deixá-los entrar e fechar-lhes as portas, receberam-nos a tiro obrigando-os a voltar para a Rotunda — onde eram toda a protecção dos poucos artilheiros que lá tinham ficado! Que heroísmos podiam praticar estes homens se os não atacaram nunca?Esse tal Machado dos Santos (o curioso que comandava os revoltosos) chamam-lhe o herói dos heróis, porque das várias vezes que tudo fugiu da Rotunda, não porque fossem atacados, mas por pânico - não quis ele fugir e lá ficou com meia-dúzia, a fazer medo aos monárquicos! O Couceiro é que lhe mandou ainda alguns tiros, mas acabaram-se-lhe as munições e mesmo que assim não fosse, retirava na mesma porque recebeu uma ordem superior para cessar o fogo!!!Para V. fazer bem ideia do que foram os desaires dos revoltosos, vou-lhe contar um episódio da revolução. Uma criada nossa tem um sobrinho de 15 anos. Na quarta-feira da revolução apanharam o rapaz para os lados da Praça da Alegria, meteram-lhe uma enorme espingarda nas unhas, afivelaram-lhe um revólver à cinta e levaram-no cheio de medo para a Rotunda, onde uma dúzia de soldados guarneciam as peças e grande porção de populares fazia enorme vozearia. Chegados ali, um que parecia chefe apontou ao pequeno um cesto e disse-lhe: “se quiseres comer ali há bacalhau, pão com carne e queijo — se quiseres carne pede áquele, que ali anda em baixo e se vires chegar algum desses malandros dos monárquicos atira-lhe sem dó...”. O rapaz não quis ouvir mais nada, desatou a comer beefs, pois de bacalhau estava ele farto e de vez em quando atirava para o ar, para se divertir e porque assim lhe tinha recomendado um dos chefes: “ é preciso dar tiros rapaz, para assustar essa canalha”. Inimigos nunca os viu e no fim de dois dias, morto de sono esperou um momento propício, encostou a espingarda a uma árvore e raspou-se com o revólver. Um amigo meu, Dr. Anachory, que mora ao pé do quartel do municipal dos Paulistas, viu, sem haver para isso motivo algum, e só porque chegavam rumores desfavoráveis à cousa monárquica, oficiais superiores entregarem as espadas a simples cadetes que lhas não queriam aceitar protestando que não tinham patente poro isso e a que eles objectavam:“mas é o mesma, O Sr. é republicano, não é? Então está muito bem, eu rendo-me e aqui está a minha espada”, Num dado momento ouviu-se uma voz gritar: lá vêm eles e desatou tudo a fugir para o quartel onde se entregaram à meia dúzia de revoltosos, que a isso os intimou! No Rossio as tropas fieis estiveram 36 horas sem comer, por fim mortos de fraqueza aceitaram comida e bebidas que os populares lhes levaram aconselhando-os a que se rendessem nos barbas dos oficiais, mortos por se entregarem. De repente começaram a dar vivas à Republica.Do Malaquias já deve saber pelo Bernardo, no campo entrincheirado onde quase não houve munições, porque quem as distribuía dando-as a rodos aos revoltosos deixando as tropas que supunham leais — quase sem elas, era o General Barreto, hoje ministro da Guerra — e antes da revolução era o Director da fábrica de pólvora e munições do exército!! No campo entrincheirado, repito, o comandante Elvas Cardeira — declarou-se neutral!No estado-maior, primeiro a maior confusão, depois cobardia enorme e por fim traição sobre traição - um dos chefes, coronel Abel Botelho é um dos enfants gatés da República. Na noite do banquete do brasileiro, o D. Afonso foi avisado de que ia rebentar a revolução e mandaram-no meter na cidadela de Cascais — Ele obedeceu e lá ficou até fugir. Dizem que quis vir para Lisboa, que fez várias tentativas, mas que não veio assim como muitos monárquicos, porque populares armados não os deixaram passar, não sei onde! É boa! Então porque não lutaram, porque não forçaram o cordão? Apre que tudo isto enoja! Nada se fez do lado dos monárquicos, senão atraiçoar e fugir - os outros quase nada fizeram, porque não lhes foi preciso.Lisboa, 20-10-910 Continuo hoje a carta. Duas vezes os republicanos viram a coisa perdida, está averiguado: quando o Couceiro atacou e quando uma companhia, ou não sei quê, da municipal se defendeu com certa coragem —isto bastou para eles verem tudo perdido. Calcule V. calcule! E o Rei? E a Rainha?Proclamou-se a república no meio do maior pasmo dos republicanos que não queriam acreditar semelhante coisa. — E agora é o que V. vê: trata-se de dividir o bolo; tira-se o João para se meter o Pedro — atira-se poeira aos olhos da populaça estúpida e ignara, que como sempre se volta para o vencedor e escarnece do vencido — não têm homens de maneira que na febre de dar empregos e de fingir que estão a abarrotar de capacidades fazem as nomeações mais absurdas. O Zé Relvas é para tudo: ontem ministro em Londres, hoje ministro das finanças — ministro das finanças — Relvas que eu trato por tu, que conheço como as palmas das mãos, é boa, é boa! E o chefe do Governo a dizer numa interview que é preciso reabilitar a memória de Ferrer e que as mulheres devem votar? E o Afonso Costa a rebentar de ódios acumulados, esquadrinhando por onde poder fazer mal a torto e a direito, visando sobretudo os que o contrariaram e humilharam? E o Padre Matos aderindo? E o Patriarca dizendo que o Afonso Costa é um grande carácter? E o Alpoim? E o Teixeira de Sousa? O Imparcial hoje monárquico enrayé e amanhã a colocar placards em que se dizia que cinco das freiras encontradas sem saias estavam grávidas? Esse espectáculo dos adesivos é de horrorizar os mais dispostos a aceitar tudo e a não pasmar de nada! E a glorificação dos infames que sem serem republicanos sustaram telegramas favoráveis à monarquia por lhes parecer que os outros tinham maior probabilidade de vencer? E os oficiais do Exército (e isto ainda é o mais extraordinário) que tendo-se conservado fiéis querem por força passar por traidores, inventando para isso, que deram ordens contrárias ás que recebiam, como se lê no Diário de Notícias de hoje? Dir-lhe-ei apenas para terminar, que o povinho anda radiante - acredita nos jornais como nos evangelhos. Lê que foram abolidos os títulos, que foram exonerados estes ou aqueles, que as riquezas dos reis vão ser propriedade do povo, que vai ser abolida esta contribuição e aquela — que o único soberano é ele e fiado em toda esta cantiga — imagino em nenhuma outra, embala-se em tais sonhos. O pior é que já andam por aí aos milhares sem trabalho, que a crise económica por ora latente, começa a adivinhar-se e que quem mais há-de sofrer com isso — é ele o povo soberano! Valha-o Deus!.Caro Vicente 22-10-910 Ainda ontem não mandei esta carta, que não sei se irá hoje. Principio por lhe contar um episódio sucedido ontem à tarde ao pé da Havaneza. Estava eu conversando com o António Cabral, com o Pissarra e o irmão do Campos Henriques, quando passou para o lado do Camões o Alpoim. Depois de estar a uma certa distância chamou por mim com tal insistência que eu, apesar da pouca vontade que tinha de o fazer — lá fui falar-lhe. Mal eu cheguei perto dele começou a gritar (foi um escândalo) que todos o tinham abandonado, até Você que lhe não respondera a uma carta, ou duas, que estava desgraçado -que perdera a sua brilhante situação mas que tudo dava por bem empregado, vendo perdidos os fidalgos e os padres, que eram a origem de todas as desgraças. “Estou perdido, estou perdido talvez tenha que ir para o Brasil, mas não importa!”. E berrava como um possesso, vociferava apoplético com o fraque sujo, despenteado, o chapéu na mão esmurrado, de bater com ele ao declamar... um inferno! Parecia um energúmeno, um louco fugido de Rilhafoles! Fez-me impressão aquele homem, que podia ter uma situação excepcional, prestando serviços à terra em que nasceu e que se reduziu, pelas suas próprias mãos, a esta triste figura arrastando consigo o país!! Que miséria, que porcaria! E agora mudemos de assunto por algum tempo, pois dói-me a cabeça hoje e esta coisa do Alpoim que agora recordei aumentou-ma.Fui a Cascais. Sua filha pareceu-me bem e nada assustada — fazia moldurinhas sem retratos e por sinal que com um certo jeitinho. O Bernardo encarando bem as coisas; pareceu-me que o desgosto de não ter feito o discurso, que realmente era bom, dominava os outros. De resto fundamenta as suas esperanças no futuro, na paz e tranquilidade que vai gozar em Tarrio. O Vicente diz de vez em quando o seu dito com certa graça; a D. Ana prescruta no olhar do Irmão a gravidade das circunstâncias e como o não vê grandemente preocupado, vai vivendo e rezando. Os pequenos brincam alegremente, enquanto a Mãe se preocupa com o futuro deles e com a maneira pela qual se há-de passar este inverno - pela qual o Bernardo há-de "assar este inverno. Na cozinha creio que prevalece a opinião, que de resto invadiu todas as cozinhas, de que os patrões andam muito impertinentes, que os monárquicos eram uma choldra e que daqui por diante podem meter mais a unha, porque os patrões se hão-de encolher com medo. Vou-me deitar, porque me não sinto lá muito bem. Provavelmente logo deito esta carta ao correio, depois de dizer mais uma coisa de que me lembro.Lª 27-10-910 Caro Amigo:Outro dia fui para casa depois de ter saído a tratar de uns negócios urgentes, muito incomodado — deitei-me e só me levantei hoje. Acabei por adoecer caro Vicente, desde o dia 4 de Outubro que ando numa excitação tal que havia de ter visto. Recebi a sua carta ou melhor o seu postal. As ferragens já mandei tratar delas — brevemente lhas mandarei, pode estar sossegado. A respeito da minha vida, está enganado, cada vez vejo o caso mais bicudo e sem esperanças de se resolver sem grande fracasso. Brevemente lhe escreverei nova carta. Calculo que Você percebe a letra, gostará de saber novidades. Os meus respeitos para Sª Mulher e Mãe, assim como para a Sª D. Ana. A Júlia recomenda-se muito à Sra. Viscondessa assim como a Berta.Amigo velho e dedicadoRua Cruz dos Poiais 16Alfredo GuimarãesFonte: Fonte: Machado, J.A. (2021). Saídos das Choças. Boletim Cultural de V.N. Famalicão. V Série, nº 12/13 (2018/2020), p. 109-142.
Condições de acesso
Comunicável, sem restrições legais.
Condições de reprodução
A reprodução de documentos encontra-se sujeita a algumas restrições tendo em conta o tipo dos documentos, o seu estado de conservação, o fim a que se destina a reprodução.
Cota descritiva
CP 3513 - cx. 26depósito 3, estante 9 e 10
Idioma e escrita
Português
Características físicas e requisitos técnicos
Em regular estado de conservação.
Instrumentos de pesquisa
ODA